quarta-feira, 23 de junho de 2010

O culto a Dioniso²






A Tragédia Grega

O culto a Dioniso

As encenações teatrais gregas derivaram dos cultos dedicados a Dionísio, o 13º deus do Olimpo, protetor das vindimas (que provavelmente originou-se da Ásia). Etimologicamente "Dionísio" significa o filho de Zeus (os romanos chamaram-no de Baco). Na época da colheita as comunidades rurais dedicavam ao deus festivo, cinco dias de folias ungidas com muito vinho, até provocar a embriaguez coletiva. Durante as bacantes, isto é, as festas dionisíacas, ninguém poderia ser detido e aqueles que estivessem presos eram libertados para participarem da festança geral.

O Corifeu e o Coro

Para entreter os participantes das festas bacantes, ajudando a passar o tempo, eram organizadas pequenas encenações, ora dramáticas, ora satíricas, coordenadas por um corifeu. Este torna-se um personagem chave na deflagração da encenação, apresentando-se como o mensageiro de Dionísio. Acompanhava-o um coro que tinha a função de externar por gestos e passos ensaiados os momentos de alegria ou de terror que permeavam a narrativa. O corifeu e o coro são os elementos básicos do Teatro, formam o ponto de partida da encenação que mais tarde assumirá algumas alterações bem definidas.
Antes de prosseguirmos na descrição dos espetáculos teatrais devemos fazer algumas observações sobre esse quase desconhecido culto a Dionísio, que penetrou subreticiamente na sociedade grega. Acredita-se que sua origem primeira veio da Trácia, sendo que as mulheres daquela região da Grécia foram suas principais adoradoras. Embriagadas ou simulando encontraram-se "possuídas", endemoninhadas, lançando sobre si cinzas e pó, as seguidoras de Dionísio refugiavam-se em locais ermos para, em contato com o ar livre e a natureza selvática, exorcizar a "possessão". Chamavam-nas de Ménades ou Bacantes e temos várias referências de grupos femininos que perambulavam pelas montanhas e bosques num estado de permanente frenesi, alimentando-se de ervas, bagas silvestres e leite de cabra selvagem. Segundo senso comum, Dionísio as alimentava. A origem psico-sociológica desse comportamento não foi ainda suficientemente avaliada, mas pode-se supor que derivasse de uma reação patológica à exclusão cada vez maior das mulheres da vida coletiva. O afastamento voluntário e a conseqüente entrega a um estado de possessão, seguidos de um tremor báquico, onde embriaguez e a devoração de animais se intercalavam, atuavam como uma terapia à sua crescente marginalização. Diga-se que essa bizarria não passou despercebida aos médicos e sociólogos gregos daquela época que a definiam como uma forma prosaica de loucura - o coribantismo. O atingido por tal loucura, excluídas as circunstâncias exteriores capazes de provocarem o fenômeno, via estranhas figuras, ouvia o som de flautas e caia num profundo paroxismo, sendo atacado por um furor irresistível de dançar. Portanto, o culto dionisíaco conservou, como um componente essencial, essas explosões imprevisíveis, anárquicas e passionais, que fizeram com que Nietzsche as identificasse como as autenticas manifestações de uma vitalidade aprisionada pela moral, pelo preconceito e pela razão.
Resistência a Dionísio

Como não poderia deixar de ser, perante uma celebração tão subversiva dos costumes, houve enorme resistência por parte de reis e dos sacerdotes na aceitação do novo culto. A lenda, por sua vez, conservou o nome de Proteu, Rei de Tebas, que teria amargado um triste destino por ter-se oposto a ele. Com o decorrer dos tempos Dionísio tornou-se cada vez mais "respeitável". As festas dionisíacas transformaram-se num ritual cada vez mais organizado e disciplinado, recebendo uma cuidadosa atenção das autoridades civis e religiosas.

Apolo, o deus símbolo da racionalidade, da beleza e da inteligência, estendeu finalmente seus braços para Dionísio. Transpondo tal esquematização para a encenação teatral podemos afirmar que a Tragédia, como espetáculo, era a domesticação apolínea dos desregramentos de Dionísio. O Consciente dominando o Inconsciente; o Racional subordinando o Temerário; o Sol desvelando a Treva. Ao reproduzir frente ao público o inesperado, o passional, imaginava-se conter Dionísio, domesticando-o. Por isso entende-se a observação de Nietzsche que afirmou que os gregos foram obrigados a erguer dois altares na encenação teatral: um para Apolo e o outro a Dionísio.
Os Ditirambos

Acredita-se que o texto trágico resultou da evolução dos ditirambos (*) - as canções dedicadas a Dionísio. Surgiram, em seus tempos primeiros, sem nenhuma ordem, pois eram cantados por amigos embriagados que confraternizavam num banquete. Desde Aríon, o ditirambo passou a ser regularmente interpretado pelo coro, celebrando o começo da Primavera e a florescência das videiras, sendo alegres ou tristes conforme a disposição dos bacantes.

O texto trágico também resultou de um conjunto de outras expressões literárias, tal como a poesia lírica e a poesia épica. Quer dizer, quando a composição trágica começou a se constituir numa forma dramática de poderosa penetração popular, já havia uma longa tradição cultural cujas origens se perdem nos confins da história.

O Conteúdo do Texto Dramático

Por outra parte, muito se discute o conteúdo ideológico do texto dramático. Para muitos ele foi o veículo utilizado pela nobreza eupátrida para difundir os ideais agônicos (enaltecendo a importância da sophrosyne e da kalokagatia, o senso de medida e de equilíbrio, que compunham os ideais da vida aristocrática). Se, por um lado, é inegável a existência de um discurso calcado nos valores aristocráticos de honra, de sangue e de vontade, por outro, o texto dramático expressou o momento da perplexidade dos habitantes da polis, constitui-se numa complexa relação onde o passado (os dramas das famílias aristocráticas) inspirou a discussão coletiva das questões que atormentavam a comunidade no presente. Quer dizer, mesmo que a intenção dos autores fosse difundir o ethos aristocrático em meio a plebe urbana, o espetáculo trágico transcendeu tais limites, tornando-se uma força dramática coletiva.

O Destino da Comunidade

Ésquilo nas "As suplicantes" apoia a aliança militar com Argos e nas "Euménides" discute o destino e a sacralidade do areópago, o tribunal dos magistrados da Polis, supremo poder judiciário dos gregos. Eurípedes tanto nas "Heráclidas" como em "Andrômaca" lança violentas farpas contra Esparta. No final das contas, não é o drama de Orestes ou os tormentos do Rei Édipo e de seus filhos que estão em jogo. Aquelas histórias eram apenas matéria-prima do autor trágico, a argamassa com a qual ele procurava moldar novas realidades. O que realmente lhes interessava era o destino da comunidade, o destino da Polis, que jazia oculto pelo manto ou pela armadura dos heróis. Não é em vão que a tragédia clássica apresenta tanto empenho em apresentar questões jurídicas, em crimes, em tribunais, em castigos e punições, revelando com isso todo o questionamento do indivíduo e suas relações com a comunidade. Todos os meandros jurídicos e éticos são espelhados nas tragédias como resultado das tensões da comunidade, tensões que derivam de fatores externos (a presença do imperialismo persa e da sempre ameaçadora Esparta) e internos (os conflitos entre os eupátridas e a plebe urbana).

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